Cabos Para-Raios para Linhas de Transmissão (Primeira Parte)

Nos estudos de qualquer sistema aéreo de transmissão de energia elétrica é de fundamental importância se considerar a necessidade da utilização de cabos para-raios sobre as linhas.

Para avaliar essa necessidade, como também as características desse sistema de proteção torna-se conveniente estudar inicialmente o surgimento e comportamento das descargas atmosférica.

O tema foi, portanto, dividido em duas partes. Neste post, serão enfocadas a formação e características das descargas atmosféricas. No post seguinte, serão descritas as formas de proteção dos sistemas de potência contra essas descargas.

A FORMAÇÃO DAS DESCARGAS ATMOSFÉRICAS

A ocorrência de uma descarga atmosférica pode ser definida como o rompimento da isolação em ar entre duas superfícies carregadas eletricamente com polaridades opostas (as nuvens e a superfície terrestre). Na formação dessa polarização, pode-se dizer que as correntes ascendentes de ar, por evaporação, tendem a transportar as partículas positivas, pequenas gotas d’água, para a parte superior da nuvem, enquanto as partículas negativas são levadas para a base da nuvem pelas grandes gotas d’água [1].

Portanto, na maioria dos casos, um grande centro de carga negativa é desenvolvido na região inferior da nuvem, enquanto um centro de cargas positivas é induzido na terra, resultando em uma diferença de potencial entre a nuvem e a terra. Os centros de carga continuam a se desenvolver até que o gradiente elétrico numa concentração de cargas na nuvem ou na terra exceda a suportabilidade do ar, provocando o movimento de cargas em direção à terra (ou à nuvem). Essa suportabilidade é da ordem de 30 kV/cm para o ar seco, nas condições atmosféricas padronizadas [1].

O processo de desenvolvimento da descarga se dá em uma série de degraus, onde cada um deles tem de 15 a 50 m de comprimento. Os degraus são retos, porém cada novo degrau toma geralmente uma direção diferente, surgem ramificações, podendo se auto-extinguir no ar, causando o aspecto tortuoso característico das descargas, conforme pode ser visto na Figura 1.

Figura 1 – Processo de desenvolvimento da descarga atmosférica

Após a descarga do centro de cargas, desenvolve-se uma elevada diferença de potencial entre este centro e outro centro qualquer, dentro da nuvem. São criados canais pelos quais essas regiões são ligadas ao caminho ainda ionizado da primeira descarga. Uma nova descarga se desenvolve, seguindo um caminho sem ramificações e com uma velocidade maior do que a da descarga piloto, repetindo todo o processo. Aproximadamente 80% das descargas apresentam no mínimo dois componentes luminosos; em torno de 20% têm três a cinco componentes, mas existem registros de descargas múltiplas com até 40 componentes [1].

A característica tortuosa da descarga atmosférica tem sido captada por diversos profissionais da arte de fotografia, conforme ilustrações contidas nas Figuras 2 e 3.

As descargas descendentes, tipo A e B, são as mais comuns, enquanto que as do tipo C e D são mais observadas no topo de montanhas ou em estruturas muito altas, conforme ilustrações contidas na Figura 4. A relação entre descargas que ocorrem entre nuvens e entre nuvem e a terra é de 1,5 a 3, em zonas temperadas, e de 3 a 6, em climas tropicais. Quanto à polaridade, a grande maioria das descargas é de polaridade negativa (mais de 90%), característica que deve ser considerada para a especificação de isolamentos elétricos [1].

Figura 4 – Tipos de descargas atmosféricas [1].

PROPRIEDADES DAS DESCARGAS ATMOSFÉRICAS

As propriedades das descargas atmosféricas a serem analisadas são:

  • intensidade e polaridade da corrente;
  • forma de onda da descarga atmosférica;
  • frequência de ocorrência;
  • ângulo de incidência.

A intensidade e polaridade da corrente é a propriedade mais importante, tanto para a proteção de sistemas de potência, quanto para o desempenho de linhas de transmissão. A magnitude da corrente independe do valor da resistência do ponto de terminação pois a impedância do canal é alta (da ordem de milhares de ohms). Essa é uma característica que imputa às descargas atmosféricas uma similaridade muito grande com uma fonte ideal de corrente, ou seja a corrente irá passar, independentemente da impedância que venha a se opor.

Na Figura 5, pode ser observado que o valor médio para as primeiras descargas negativas é de aproximadamente 30 kA, enquanto as descargas positivas, que são menos freqüentes, apresentam um valor médio de 35 kA. Por outro lado, enquanto apenas 5% das descargas negativas excedem 80 kA, para as descargas positivas 5% excedem 250 kA. Portanto, as descargas positivas apresentam valores muito maiores do que as negativas, se tornando mais preocupantes.

Figura 5 – Intensidade de corrente das descargas (distribuição de probabilidade) [1].
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A forma de onda das descargas atmosféricas é normalmente especificada pela frente de onda e por sua cauda, conforme ilustração contida na Figura 6, entendo-se:

  • frente: tempo para atingir o valor máximo;
  • cauda: tempo para cair até a metade do valor máximo; exemplo de forma de onda comumente utilizada em laboratórios de alta tensão: 1,2×50 micro-segundos, ilustrado na Figura 6.
Figura 6 – Forma de onda de descarga [10].

O exemplo indica que a descarga atinge o valor máximo em 1,2 micro-segundos e cai para a metade do valor máximo em 50 micro-segundos.

Esses tempos também apresentam características aleatórias. Na Figura 7, são apresentados levantamentos estatísticos para o tempo de frente de onda. Nesse levantamento, algumas informações podem ser colhidas: as descargas subsequentes apresentam tempos bem menores para atingir o valor máximo, desde que ocorrem após a descarga piloto ter desbravado todo o caminho a percorrer, facilitando todo o percurso para as descargas subsequentes. Uma outra observação é que as descargas positivas são bem mais lentas para alcançar o valor máximo, se tornando bem mais danosas do que as descargas negativas.

Figura 7 – Distribuição dos tempos de frente [1].

Quanto à frequência de ocorrência, a densidade de descargas para a terra (número de descargas para a terra por km2) pode ser obtida a partir do nível ceráunico de cada região. Entende-se como nível ceráunico o número de dias no ano com ocorrência de trovoadas (ruídos audíveis provocados pelas descargas), independente do números desses eventos, ou seja, ocorrendo uma ou mais trovoadas no dia, conta-se apenas um dia. A densidade de descargas para a terra pode ser obtida a partir da formulação apresentada na Figura 8:

Figura 8 – Formulação para cálculo da densidade de descargas para a terra.

Já o ângulo de incidência mede a inclinação da descarga em relação à vertical. É uma característica que também apresenta um comportamento aleatório. Na Figura 9 é apresentada a densidade de probabilidade para o ângulo de incidência de descargas registradas na estação meteorológica localizada no Monte San Salvatore, na Itália [1]. As observações indicam que existe uma forte tendência para incidências próximas da vertical.

Figura 9 – Densidade de probabilidade para o ângulo de incidência [1]

EFEITO DAS DESCARGAS NOS SISTEMA DE POTÊNCIA

Ao atingir um sistema de potência, uma elevada sobretensão é desenvolvida através de equipamentos e da isolação de linhas. Se a tensão exceder a suportabilidade da isolação ocorrerá uma ruptura dielétrica, “podendo” ocorrer a abertura de um arco de potência, tornando necessária a atuação da proteção para eliminação do curto-circuito. A descarga através do ar ou sobre as cadeias de isoladores não produz nenhum dano, entretanto, em isolantes sólidos de geradores e transformadores provoca um dano permanente de elevadas proporções.

A possibilidade da ocorrência de uma arco de potência está relacionada com o momento em que a descarga atmosférica ocorra. Em ocorrendo um surto atmosférico superior à suportabilidade da cadeia de isoladores, surgirá o “flashover” ou o “back flashover” (arcos contornando a cadeia de isoladores, ou do condutor para a estrutura, ou vice-versa, similar ao registrado na Figura 10), os quais, quando se extinguirem, deixarão o ar circo-vizinho à cadeia de isoladores ionizado.

Figura 10 – Arco elétrico contornando uma cadeia de isoladores [11].

Caso a linha seja atingida no momento em que a tensão de serviço esteja passando por um valor que possa manter o caminho ionizado (não precisa ser o valor máximo), surgirá o arco de potência, conforme ilustração contida na Figura 11-A. Caso contrário (a tensão de serviço passando por zero, ou próximo a esse ponto, conforme ilustrado na Figura 11-B), o arco de potência não ocorrerá. No primeiro caso, a linha será retirada de operação pelos relés de proteção, desde que o curto-circuito estará configurado.

No segundo caso, os relés nem tomarão conhecimento, pois o curto-circuito não estará configurado. Essa é uma situação que não é impossível de acontecer, pelo contrário, uma vez que o evento “surto atmosférico” ocorre em micro-segundos e as variações senoidais da tensão de serviço ocorrem em mile-segundos, ou seja 1000 vezes mais lentos. Em outras palavras, qualquer desvio à direita ou à esquerda do momento em que o sinal de tensão de serviço passa por zero representa centenas de micro-segundos, caracterizando que a probabilidade dessa ocorrência não é tão pequena, conforme citado na nomenclatura [12].

Figura 11 – Flashover versos tensão de serviço: (A) o flashover ocorreu quando a tensão de serviço estava próxima ao seu valor máximo e (B) o flashover ocorreu quando a tensão de serviço estava próxima à sua passagem por zero [3].
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COMENTÁRIOS FINAIS

Os surtos atmosféricos causam muitos transtornos ao sistema de potência, principalmente em regiões em que o nível ceráunico é elevado. No Brasil, existem diversas regiões em que esse nível se situa em patamares maiores que 100, a exemplo dos Estados de Minas Gerais, Piauí e Maranhão, os quais registram níveis que se destacam no cenário internacional.

Em geral, a proteção contra descargas atmosféricas é dirigida contra os surtos de tensão. Embora a corrente possa ser extremamente elevada, seu tempo de duração é muito pequeno, sendo facilmente suportada por um condutor de pequeno diâmetro. O tipo de condutor a ser utilizado na condução de surtos atmosféricos é normalmente determinado por esforços mecânicos ao invés da capacidade de corrente. Eles se denominam “cabos para-raios” e serão detalhados no post seguinte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] D’AJUZ, A. Transitórios Elétricos e Coordenação de Isolamentos.Universidade Federal Fluminense-Editora Universitária. 1987.

[2] https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2019/10/saiba-como-se-proteger-de-raios-e-que-locais-evitar-em-caso-de-tempestades-ck29khax70a7n01n31qx9h3iy.html (consulta em 07/04/2020).

[3] http://www.forumdaconstrucao.com.br/conteudo.php?a=28&Cod=1686 (consulta em 07/04/2020).

[4] http://portal.cabangu.com.br/?p=7891&print=1 (consulta em 07/04/2020).

[5] http://www.2015-2018.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/cemig-alerta-sobre-cuidados-com-as-descargas-atmosfericas-no-estado (consulta em 07/04/2020).

[6] https://correiodaparaiba.com.br/cidades/verao-tambem-e-epoca-de-raios-na-pb-cidades-do-sertao-lideram-casos/ (consulta em 07/04/2020).

[7] https://www.portalmultiplix.com/noticias/cotidiano/nova-friburgo-registra-numero-de-raios-275-maior-nos-primeiros-dias-de-janeiro (consulta em 07/04/2020).

[8] https://cidadeverde.com/noticias/184672/piaui-e-3-lugar-em-numero-de-mortes-provocadas-por-raio-em-2014 (consulta em 07/04/2020).

[9] http://culturaaeronautica.blogspot.com/2010/05/misterios-das-descargas-eletricas.html (consulta em 07/04/2020).

[10] Ilustrações elaboradas pelo próprio autor.

[11] Cigré – Brasil. Revista ELETROEVOLUÇÃO.

[12] LEWIS, W.W. The Protection of Transmission Systems Against Lightning. General Publishing Company, Ltd. 1965.

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